Revista Virtual de Artes, com ênfase na pintura do século XIX

Posts com tag “Fernando Pessoa

Entre o luar e o arvoredo

43.william-oliver

Entre o luar e o arvoredo,

Entre o desejo e não pensar

Meu ser secreto vai a medo

Entre o arvoredo e o luar.

Tudo é longínquo, tudo é enredo.

Tudo é não ter nem encontrar.

Entre o que a brisa traz e a hora,

Entre o que foi e o que a alma faz,

Meu ser oculto já não chora

Entre a hora e o que a brisa traz.

Tudo não foi, tudo se ignora.

Tudo em silêncio se desfaz.

Fernando Pessoa
Pintura: William Oliver (Inglaterra, 1823-1901)



Contemplo o lago mudo…

La Stretta di Lavena, Lago di Lugano - 1932- Oreste Albertini (italian painter)

Contemplo o lago mudo
Que uma brisa estremece.
Não sei se penso em tudo
Ou se tudo me esquece. 
O lago nada me diz,
Não sinto a brisa mexê-lo
Não sei se sou feliz
Nem se desejo sê-lo.

Trêmulos vincos risonhos
Na água adormecida.
Por que fiz eu dos sonhos
A minha única vida?

Fernando Pessoa

Pintura: “La stretta di Lavena, Lago de Lugano” – 1932 –

Oreste Albertini (Itália, 1887-1953)


Chove…

piove_thumb

Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme.
Quando a alma é viúva

Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego…
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece

Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece…
Não paira vento, não há céu que eu sinta.

Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente…

Fernando Pessoa


card-antiq (2)

Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!

Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?

Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade

Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh’alma alheia

Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.

Fernando Pessoa


Para além da curva da estrada

Jules Alexandre GAMBA de PREYDOUR (Paris, 1846 -) Jeune fille effeuillant une marguerite

Para além da curva da estrada
talvez haja um poço, e talvez um castelo,
e talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
só olho para a estrada antes da curva,
porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
e para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
há a estrada sem curva nenhuma.
Alberto Caeiro
Heterônimo de Fernando Pessoa)
em "Poemas Inconjuntos"
Pintura: Jules Alexandre Gamba de Preydour (Paris, França, 1846 – ?)


Para além da curva da estrada

Village life on a nice summer day, Onsbjerg, Samso_Peder Mork Monsted

Para além da curva da estrada
talvez haja um poço, e talvez um castelo,
e talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
só olho para a estrada antes da curva,
porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
e para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
há a estrada sem curva nenhuma.
Alberto Caeiro, em "Poemas Inconjuntos"
Heterônimo de Fernando Pessoa

Pintura: Peder Mork Monsted
(Pintor dinamarquês, 1859-1941)


Antes de nós – Ricardo Reis

DSC00501

Antes de nós nos mesmos arvoredos
Passou o vento, quando havia vento,
E as folhas não falavam
De outro modo do que hoje.

Passamos e agitamo-nos debalde.
Não fazemos mais ruído no que existe
Do que as folhas das árvores
Ou os passos do vento

Tentemos pois com abandono assíduo
Entregar nosso esforço à Natureza
E não querer mais vida
Que a das árvores verdes.

Inutilmente parecemos grandes.
Salvo nós nada pelo mundo fora
Nos saúda a grandeza
Nem sem querer nos serve.

Se aqui, à beira-mar, o meu indício
Na areia o mar com ondas três o paga,
Que fará na alta praia
Em que o mar é o Tempo?
Ricardo Reis (heterônimo de Fernando Pessoa)

Foto: Florianópolis, SC, Brasil por Pedro Mendonça


É fácil trocar as palavras…

hugues merle-romeo and juliet

É fácil trocar as palavras,
Difícil é interpretar os silêncios!
É fácil caminhar lado a lado,
Difícil é saber como se encontrar!
É fácil beijar o rosto,
Difícil é chegar ao coração!
É fácil apertar as mãos,
Difícil é reter o calor!
É fácil sentir o amor,
Difícil é conter sua torrente!

Como é por dentro outra pessoa?
Quem é que o saberá sonhar?
A alma de outrem é outro universo
Com que não há comunicação possível,
Com que não há verdadeiro entendimento.

Nada sabemos da alma
Senão da nossa;
As dos outros são olhares,
São gestos, são palavras,
Com a suposição
De qualquer semelhança no fundo.

Fernando Pessoa
Pintura: Romeu e Julieta – Hugues Merle (França, 1823-1881)