Entre o luar e o arvoredo
Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo.
Tudo é não ter nem encontrar.
Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.
Fernando Pessoa
Pintura: William Oliver (Inglaterra, 1823-1901)
Nossas marcas no tempo…
NOSSAS MARCAS NO TEMPO…
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(Passagem das Horas – Poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)
Pintura: Albert Anker (Suiça, 1831-1910)
Amar é uma arte!
EDMUND BLAIR-LEIGHTON
FRANÇOIS BRUNERY FLORENT WILLEMS
CARL SCHWENINGER
CARL ADOLF GUGEL PIO RICCI
GABRIELE CASTAGNOLA GIUSEPPE CIARANFI
WILLIAM POWELL FRITH
HARALD SLOTT-MOLLER
No azul do teu peito
ensolarado
há espelhos de cristal
multiplicando imagens.
Emergem risos
lágrimas
promessas
olhares infantis
perdidamente
infinitamente
apaixonados
adolescentes.
A vida renasce
das tuas mãos
trêmulas
entrelaçadas
– há muito tempo entrelaçadas-
Reencontradas.
No espaço secreto
da memória,
nosso retrato
– De corpo inteiro –
É o quadro mais bonito
que se pode iluminar.
Anna Maria Feitosa
Noutros lugares…
NOUTROS LUGARES
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exatamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
(Jorge de Sena)
Foto: Praia de Itaguaçu – Florianópolis, SC, Brasil
por Pedro Mendonça
Nossas marcas no tempo
NOSSAS MARCAS NO TEMPO…
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(Passagem das Horas – Poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)
Pintura: Charles Spencelayh (Inglaterra, 1865-1958)
Chove…
Chove. Há silêncio, porque a mesma chuva
Não faz ruído senão com sossego.
Chove. O céu dorme.
Quando a alma é viúva
Do que não sabe, o sentimento é cego.
Chove. Meu ser (quem sou) renego…
Tão calma é a chuva que se solta no ar
(Nem parece de nuvens) que parece
Que não é chuva, mas um sussurrar
Que de si mesmo, ao sussurrar, se esquece.
Chove. Nada apetece…
Não paira vento, não há céu que eu sinta.
Chove longínqua e indistintamente,
Como uma coisa certa que nos minta,
Como um grande desejo que nos mente.
Chove. Nada em mim sente…
Fernando Pessoa
Ah, quanta vez, na hora suave
Em que me esqueço,
Vejo passar um voo de ave
E me entristeço!
Por que é ligeiro, leve, certo
No ar de amavio?
Por que vai sob o céu aberto
Sem um desvio?
Por que ter asas simboliza
A liberdade
Que a vida nega e a alma precisa?
Sei que me invade
Um horror de me ter que cobre
Como uma cheia
Meu coração, e entorna sobre
Minh’alma alheia
Um desejo, não de ser ave,
Mas de poder
Ter não sei quê do voo suave
Dentro em meu ser.
Fernando Pessoa
Para além da curva da estrada
Para além da curva da estrada
talvez haja um poço, e talvez um castelo,
e talvez apenas a continuação da estrada.
Não sei nem pergunto.
Enquanto vou na estrada antes da curva
só olho para a estrada antes da curva,
porque não posso ver senão a estrada antes da curva.
De nada me serviria estar olhando para outro lado
e para aquilo que não vejo.
Importemo-nos apenas com o lugar onde estamos.
Há beleza bastante em estar aqui e não noutra parte qualquer.
Se há alguém para além da curva da estrada,
esses que se preocupem com o que há para além da curva da estrada.
Essa é que é a estrada para eles.
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
há a estrada sem curva nenhuma.
Alberto Caeiro Heterônimo de Fernando Pessoa)
em "Poemas Inconjuntos"
Pintura: Jules Alexandre Gamba de Preydour (Paris, França, 1846 – ?)