Reverie
"Refugia-te na Arte" diz-me Alguém
"Eleva-te num vôo espiritual,
Esquece o teu amor, ri do teu mal,
Olhando-te a ti própria com desdém.
Só é grande e perfeito o que nos vem
Do que em nós é Divino e imortal!
Cega de luz e tonta de ideal
Busca em ti a Verdade e em mais ninguém!"
No poente doirado como a chama
Estas palavras morrem… E n’Aquele
Que é triste, como eu, fico a pensar…
O poente tem alma: sente e ama!
E, porque o sol é cor dos olhos d’Ele,
Eu fico olhando o sol, a soluçar…
Florbela Espanca
Pintura: Reverie – Alfred Stevens (Bélgica, 1823-1906)
JANOS LASZLO ALDOR (Hungria, 1895 -1944)
JOHN WILLIAM GODWARD (Reino Unido, 1861-1922)
Escolha
Apesar do medo
escolho a ousadia.
Ao conforto das algemas, prefiro
a dura liberdade.
Vôo com meu par de asas tortas,
sem o tédio da comprovação.
Opto pela loucura, com um grão
de realidade:
meu ímpeto explode o ponto,
arqueia a linha, traça contornos
para os romper.
Desculpem, mas devo dizer:
eu
quero o delírio.
Lya Luft
in Pra não dizer adeus
Pintura: Charles Courtney Curran (EUA, 1861-1942)
Entre o luar e o arvoredo
Entre o luar e o arvoredo,
Entre o desejo e não pensar
Meu ser secreto vai a medo
Entre o arvoredo e o luar.
Tudo é longínquo, tudo é enredo.
Tudo é não ter nem encontrar.
Entre o que a brisa traz e a hora,
Entre o que foi e o que a alma faz,
Meu ser oculto já não chora
Entre a hora e o que a brisa traz.
Tudo não foi, tudo se ignora.
Tudo em silêncio se desfaz.
Fernando Pessoa
Pintura: William Oliver (Inglaterra, 1823-1901)
No banco de jardim
NO BANCO DE JARDIM
No Banco de jardim
o tempo se desfaz
e resta entre ruídos
a corola de paz.
No banco do jardim.
a sombra se adelgaça
e entre besouro e concha
de segredo, o anjo passa.
No banco de jardim,
o cosmo se resume
em serena parábola,
impressentido lume.
Carlos Drummond de Andrade (Brasil, 1902-1987)
Pintura: Pierre Auguste Renoir (França, 1841-1919)
A lua vem surgindo cor de prata…
EDUARD KASPARIDES
JOSEPH WRIGHT OF DERBY
ALFRED EDWARD LAMBOURNE
GUILLERMO GOMEZ GIL
FRIDOLF WEURLANDER
HENRI-JOSEPH HARPIGNIES
JOHN ATKINSON GRIMSHAW
IVAN AIVAZOVSKY
RONNY GABRIELS
HORA INDECISA
A lua branca
brilha no bosque.
De ramo em ramo,
parte uma voz que
vem da ramada.
Oh! bem-amada!
Reflete o lago,
como um espelho,
o perfil vago
do ermo salgueiro
que ao vento chora.
Sonhemos, é hora…
Como que desce
uma imprecisa
calma infinita
do firmamento
que a lua frisa.
É a hora indecisa…
Paul Verlaine
Nossas marcas no tempo…
NOSSAS MARCAS NO TEMPO…
Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.
(Passagem das Horas – Poema de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa)
Pintura: Albert Anker (Suiça, 1831-1910)
Primavera – Olavo Bilac
PRIMAVERA
Ah! quem nos dera que isso, como outrora,
inda nos comovesse! Ah! quem nos dera
que inda juntos pudessemos agora
ver o desabrochar da primavera!
Saíamos com os pássaros e a aurora,
e, no chão, sobre os troncos cheios de hera,
sentavas-te sorrindo, de hora em hora:
"Beijemo-nos! amemo-nos! espera!"
E esse corpo de rosa recendia,
e aos meus beijos de fogo palpitava,
alquebrado de amor e de cansaço….
A alma da terra gorjeava e ria…
Nascia a primavera…E eu te levava,
primavera de carne, pelo braço!
Olavo Bilac
Ilustração: Ignacio Pinazo (Espanha, 1849-1916)
Canção da primavera – Mario Quintana
CANÇÃO DA PRIMAVERA
Primavera cruza o rio
Cruza o sonho que tu sonhas.
Na cidade adormecida
Primavera vem chegando.
Catavento enloqueceu,
Ficou girando, girando.
Em torno do catavento
Dancemos todos em bando.
Dancemos todos, dancemos,
Amadas, Mortos, Amigos,
Dancemos todos até
Não mais saber-se o motivo…
Até que as paineiras tenham
Por sobre os muros florido!
(Mario Quintana; Canções, 1946)
Ilustração: Placa de porcelana KPM