CANÇÃO EXCÊNTRICA – Cecília Meireles
CANÇÃO EXCÊNTRICA
Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.
Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.
Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
– saudosa do que não faço,
– do que faço, arrependida.
Cecília Meireles
Pintura: Puvis de Chavannes (França, 1824-1898)
Noutros lugares…
NOUTROS LUGARES
Não é que ser possível ser feliz acabe,
quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.
É que os lugares acabam. Ou ainda antes
de serem destruídos, as pessoas somem,
e não mais voltam onde parecia
que elas ou outras voltariam sempre
por toda a eternidade. Mas não voltam,
desviadas por razões ou por razão nenhuma.
É que as maneiras, modos, circunstâncias
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas solta juventude.
As ruas rasgam casas onde leitos
já frios e lavados não rangiam mais.
E portas encostadas só se abrem sobre
a treva que nenhuma sombra aquece.
O modo como tínhamos ou víamos,
em que com tempo o gesto sempre o mesmo
faríamos com ciência refinada e sábia
(o mesmo gesto que seria útil,
se o modo e a circunstância persistissem),
tornou-se sem sentido e sem lugar.
Os outros passam, tocam-se, separam-se,
exatamente como dantes. Mas
aonde e como? Aonde e como? Quando?
Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,
a que horas do dia ou da noite, não sei.
Apenas sei que as circunstâncias mudam
e que os lugares acabam. E que a gente
não volta ou não repete, e sem razão, o que
só por acaso era a razão dos outros.
Se do que vi ou tive uma saudade sinto,
feita de raiva e do vazio gélido,
não é saudade, não. Mas muito apenas
o horror de não saber como se sabe agora
o mesmo que aprendi. E a solidão
de tudo ser igual doutra maneira.
E o medo de que a vida seja isto:
um hábito quebrado que se não reata,
senão noutros lugares que não conheço.
(Jorge de Sena)
Foto: Praia de Itaguaçu – Florianópolis, SC, Brasil
por Pedro Mendonça
Estátua
Jardim da tarde divina,
por onde íamos passeando
saudade e melancolia.
Toda a gente me falava.
E nasceu minha alegria
do que não me disse nada.
O azul acabava-se, e era
céu, toda a sua cabeça,
poderosamente bela.
Nos seus olhos sem pupilas
meus próprios versos estavam
como memórias escritas.
E na curva de seu lábio,
o ar, em música transido,
perguntava por seu hálito.
Ah, como a tarde divina
foi velando suas flores,
água, areia, relva fria …
Nítida, redonda lua
prolongou seu corpo imóvel
numa perfeição mais pura.
Fez parecer que sorria
seu rosto para meu rosto:
divindade quase em vida.
Minha cegueira, em seus olhos
minha voz entre seus lábios,
e minha dor em seus modos.
Minha forma no seu plinto,
livre de assuntos humanos.
De longe. Sorrindo.
Cecília Meireles
in Mar Absoluto
No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas
que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento…
Mário Quintana
Pintura: Peter Tom-Petersen (pintor dinamarquês, 1861-1926)
Queda livre
QUEDA LIVRE
Bem que eu queria dormir,
mas isso que não esqueço
me chama a noite inteira,
sem nome e sem piedade.
Se abro os olhos, eu caio
no esquecimento. Se durmo,
apagam-se as esperanças
– e não me sobra mais nada.
Devo largar minhas perdas
que ficaram na soleira
entre o passado e o recomeço ?
Sempre que me levanto
eu perco um novo pedaço:
ouço os cacos rolando
a noite toda na escada.
Lya Luft
Pintura: Maximilian Pirner
Para quê ?
Tudo é vaidade neste mundo vão…
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada !
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração !
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão !…
Beijos d’amor! Pra quê ?!…
Tristes vaidades !
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta !
Só acredita neles quem é louca !
Beijos d’amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta !…
Florbela Espanca
Foto: Man Ray
O sono das águas…
O SONO DAS ÁGUAS
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d¿água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir…
Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes…
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono…
(Guimarães Rosa)
Um pouco de poesia…
Poema
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.
Carlos Drummond de Andrade
Pintura: Puvis de Chavannes
Canção do Sonho Acabado
Já tive a rosa do amor
– rubra rosa, sem pudor.
Cobicei, cheirei, colhi.
Mas ela despetalou
E outra igual, nunca mais vi.
Já vivi mil aventuras,
Me embriaguei de alegria!
Mas os risos da ventura,
No limiar da loucura,
Se tornaram fantasia…
Já almejei felicidade,
Mãos dadas, fraternidade,
Um ideal sem fronteiras
– utopia! Voou ligeira,
Nas asas da liberdade.
Desejei viver. Demais!
Segurar a juventude,
Prender o tempo na mão,
Plantar o lírio da paz!
Mas nem mesmo isto eu pude:
Tentei, porém nada fiz…
Muito, da vida, eu já quis.
Já quis… mas não quero mais…
Helenita Scherma
Pintura: Ivan Kramskoi
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Eugénio de Andrade
Pintura: Alfonso Simonetti