Escolha
Apesar do medo
escolho a ousadia.
Ao conforto das algemas, prefiro
a dura liberdade.
Vôo com meu par de asas tortas,
sem o tédio da comprovação.
Opto pela loucura, com um grão
de realidade:
meu ímpeto explode o ponto,
arqueia a linha, traça contornos
para os romper.
Desculpem, mas devo dizer:
eu
quero o delírio.
Lya Luft
in Pra não dizer adeus
Pintura: Charles Courtney Curran (EUA, 1861-1942)
Momentos: Lya Luft
TODAS AS ÁGUAS
Quando pensei que estava tudo cumprido
havia outra surpresa: mais uma curva
do rio, mais riso e mais pranto.
Quando calculei que tudo estava pago,
anunciaram-se novas dívidas e juros,
o amor e o desafio.
Quando achei que estava serena,
os caminhos se espalmaram
como dedos de espanto
em cortinas aflitas. E eu espio,
ainda que o olhar seja grande
e a fresta pequena.
Pintura: Claude-Marie Dubufe
DANÇA LENTA
Não somos nem bons nem maus:
somos tristes. Plantados entre chão
e estrelas, lutamos com sangue,
pedras e paus, sonho
e arte.
Nem vida nem morte:
somos lúcida vertigem,
glória e danação. Somos gente:
dura tarefa.
Com sorte, aqui e ali a ternura
faz parte.
Pintura: Vicente Romero Redondo (artista contemporâneo espanhol)
ROSTO COM DOIS PERFIS
Renuncio às palavras
e às explicações.
Ando pelos contornos,
onde todos os significados
são sutis, são mortais.
Não quero perder o momento
belo. Quero vivê-lo mais,
com a intensidade que exige a vida:
desgarramento e fulguração.
Então me corto ao meio e me solto
de mim:
a que se prende e a que voa,
a que vive e a que se inventa.
Duplo coração:
a que se contempla e a que nunca
se entende,
a que viaja sem saber se chega
– mas não desiste jamais.
Pintura: William Turner Dannat
Queda livre
QUEDA LIVRE
Bem que eu queria dormir,
mas isso que não esqueço
me chama a noite inteira,
sem nome e sem piedade.
Se abro os olhos, eu caio
no esquecimento. Se durmo,
apagam-se as esperanças
– e não me sobra mais nada.
Devo largar minhas perdas
que ficaram na soleira
entre o passado e o recomeço ?
Sempre que me levanto
eu perco um novo pedaço:
ouço os cacos rolando
a noite toda na escada.
Lya Luft
Pintura: Maximilian Pirner
PERDER, GANHAR…
Com as perdas, só há um jeito:
perdê-las.
Com os ganhos,
o proveito é saborear cada um
como uma fruta boa da estação.
A vida, como um pensamento,
corre à frente dos relógios.
O ritmo das águas indica o roteiro
e me oferece um papel:
abrir o coração como uma vela
ao vento, ou pagar sempre a conta
já vencida.
Lya Luft